Ivan Chishkala: do Benfica ao Torpedo – entre rupturas, ambição e identidade

ENTREVISTA INTEGRAL DE IVAN CHISHKALA – PARTE 1
Ivan Chishkala: do Benfica ao Torpedo, conflito com a AMFR e o dinheiro no futsal
Ivan Chishkala — capitão da seleção russa de futsal, nascido em Norilsk, percorreu o caminho desde o campo de bairro até Lisboa, tornando-se líder no Benfica. Neste verão, vários clubes estrangeiros demonstraram interesse, mas Ivan optou por regressar à Rússia, assinando com o Torpedo de Nizhny Novgorod — clube que nunca chegou sequer às semifinais do campeonato russo.
SAÍDA DO BENFICA
— Começo com uma citação do teu post, que publicaste ainda enquanto jogador do Benfica:
“Esforcei-me muito, estive sempre disponível, dei tempo e esperei, mas disseram-me que as pessoas responsáveis no clube decidiram que o futuro seguiria sem mim, e que o clube não tinha nem teria qualquer proposta para prolongar a ligação.”
Teria ficado no Benfica se tivesses recebido uma proposta?
— Esse post foi o ponto final, quando já não havia caminho de volta. Se me tivessem feito uma proposta no início da temporada, eu teria aceitado. E quanto mais cedo tivesse acontecido, maior seria a probabilidade de continuar. No início da época era 90%, após o Ano Novo, a situação era 50/50 e quanto mais próximo do fim, menos hipóteses havia. Portanto, a pergunta não é se eu ficaria, mas sim "quando" — esse era o fator determinante. Escrevi esse post sobretudo para os adeptos.
— Durante a época, ninguém do clube te apresentou qualquer proposta?
— Não. Era uma situação complexa. As pessoas podem pensar que se jogas bem, o clube vai propor renovar. Mas tudo é muito mais complicado — estou a falar, sobretudo, das relações humanas. Como o Benfica é um clube gigantesco, as coisas funcionam de forma mais intricada.
— Nesse mesmo post escreveste:
“Foi incrivelmente difícil, porque tive de lutar não apenas contra adversários, mas também contra outras forças. Muitas vezes tive de nadar contra a corrente e defender ideias, princípios e pessoas, mesmo que isso jogasse contra mim.”
Podes explicar o que querias dizer?
— Refiro-me principalmente às relações humanas. Em qualquer organização desportiva — especialmente num clube grande como o Benfica — quanto mais alto o nível, mais interesses surgem à volta: financeiros, mediáticos, humanos e outros. E também cresce a competição interna dentro da equipa, porque todos querem sobreviver, subir ao pódio e apropriar-se das vitórias.
No clube as pessoas mudam constantemente — entram novos jogadores, treinadores. Em cinco anos vi de tudo, mas nunca tive ódio ou inimizades. Mantenho até hoje uma excelente relação com o Benfica.
— Mas estás a referir-te ao clube em si.
— Sim, mas as pessoas que o compõem mudam. Imagina: quando cheguei ao Benfica, e após cinco anos, só restavam quatro jogadores da minha primeira época — eu, Afonso, Arthur e Silvestre. Passaram quatro treinadores! Por isso houve momentos incríveis e outros extremamente difíceis.
PARTE 2
— Disseste que jogaste em diferentes posições. Isso foi por necessidade da equipa ou por decisão dos treinadores?
— Em 2022, assinei novo contrato por três anos. Veio o treinador Pulpis. Ele achava que os nossos defesas não eram confiáveis, então pediu que eu jogasse como fixo. Aceitei, fui para o campo e vencemos a Supertaça. Fiz o meu trabalho.
Mas isso durou dois anos. Eu dizia: “Temos bons jogadores para essa posição, o problema é que não confias neles.” E eu pagava o preço. Disse que não acreditava que esse plano resultasse. E estava certo. A minha performance caiu.
— Falaste com a direção sobre isso?
— Sim. No terceiro ano, disse-lhes: “Deixem-me jogar na frente. Contratem um fixo.” Trouxeram o André Coelho — e eu voltei à minha posição original.
— E com Cassiano Klein, como foi?
— Tivemos conflitos. Ele queria controlo absoluto. Dizia-me como treinar, como recuperar, como viver fora do treino. Eu disse: “Sei o que estou a fazer. Já jogo há muitos anos.”
Ele não gostava da minha independência. Dizia: “Já vi jogadores como tu. Confias demais em ti próprio.”
E quando eu jogava bem, ele dizia: “Tiveste sorte.” Quando corria mal, dizia: “Eu avisei-te.”
— Tinhas problemas de rendimento?
— Não. Por exemplo, se o jogo é sábado, eu sei que na quinta posso treinar a 70–75%. O treinador queria sempre 100%. Mas ninguém consegue manter 100% toda a semana sem quebrar.
Ele também acreditava que fora dos treinos o jogador devia viver só para o futsal. Eu não concordo. Tenho família, vida, interesses. O futsal é parte da minha vida — mas não é tudo.
— E com o diretor desportivo?
— Ele apoiava totalmente o treinador. Disse-me uma vez: “Estás no fim da hierarquia.”
Respondi: “Então não podemos trabalhar juntos.”
Quero respeito mútuo. Não sou superior a ninguém — mas também não sou inferior.
— Foste visto como rebelde?
— Talvez. Mas fui sempre profissional. Nunca faltei, nunca traí o clube.
Só não aceitava ser controlado cegamente. Defendi as minhas ideias. E sim — quem fala a verdade, expõe-se.
— Arrependes-te de algo?
— Não. Fiz tudo com consciência. Respeitei o clube. E o clube também me respeitou na saída.
PARTE 3
— Quantas propostas recebeste além da do Torpedo?
— Onze ou doze. De clubes da Rússia e do estrangeiro. Mas não quero dizer nomes. Falei com todos com respeito. E quero manter boas relações com todos. Isso é profissionalismo.
— Por que escolheste o Torpedo, um clube que nunca chegou sequer às meias-finais?
— Em 2023, o presidente do Torpedo, Nikolai Vladimirovich Khodov, veio a Lisboa. Sentou-se comigo e perguntou: “Vês-te aqui no futuro?”
Respondi: “Talvez. Depende de muita coisa.”
Disse-lhe também que não jogo só por dinheiro. Quero um projeto com alma. Respeito. Estabilidade para a família.
— O que mais pesou?
— Quatro razões:
A atitude do presidente — veio pessoalmente falar comigo.
A chegada do Robinho — um amigo e parceiro de confiança.
Motivos familiares.
Uma razão pessoal que prefiro não divulgar.
— O contrato é bom?
— Sim. É o melhor da minha carreira. E claro que houve clubes que ofereceram o dobro. Literalmente. Mas o Torpedo ofereceu outra coisa: visão, confiança, base sólida.
— Foste tu quem convenceu o Robinho?
— Já havia interesse do clube. Mas a minha ida ajudou a acelerar o processo. Ele também queria regressar à Rússia. Falámos muito. Tomámos a decisão juntos.
Ele é mais do que colega — é família. Já passámos por tudo juntos.
— Porquê essa ligação tão forte?
— No Gazprom-Ugra fui por causa dele. No Benfica, quando surgiu o meu nome, foi ele quem falou ao diretor.
Durante o Europeu de 2022, quando a minha filha nasceu, a primeira pessoa a vê-la foi a mulher do Robinho. Isso diz tudo.
PARTE 4
— O presidente do Torpedo, Khodov, é conhecido por ser ativo, até demasiado. Isso não te preocupa?
— Ele é apaixonado. Quer saber tudo — da tática à escolha dos equipamentos. Mas está a aprender a delegar. Isso é importante.
Temos uma relação direta. Se tenho uma sugestão, ele ouve. Se discorda, explica. Há respeito mútuo. E isso vale muito.
— E se ele entrar no balneário e disser ao treinador o que fazer?
— Depende. Se ele tiver razão, aceito. Se não tiver, digo-lhe. Mas até agora, respeitou sempre os espaços. Confio que continuará assim.
— Estás feliz por voltar à Rússia?
— Sim. Apesar de tudo, é o meu país. A minha família está cá. Mas também tenho saudades de Portugal.
— Portugal marcou-te?
— Muito. Vivi cinco anos maravilhosos. O povo é aberto, caloroso, respeitador. A minha filha nasceu lá. Tem cidadania portuguesa.
Comprámos casa. É o nosso segundo lar.
— Pensas voltar?
— Talvez. Nunca se sabe. Gosto do país. A vida tem outro ritmo. As pessoas vivem de forma mais equilibrada.
— A tua filha tem passaporte português. E tu?
— Quis candidatar-me à cidadania. Mas as novas leis tornaram tudo muito incerto. Podia ficar preso no processo. Então desisti.
Ela tem cidadania. E isso já é muito importante.
— O que mais valorizas em Portugal?
— A educação, o respeito, a forma como se trata o próximo. Coisas simples: no trânsito param na passadeira, pedem desculpa, agradecem.
E no balneário? Elogiar o colega é normal. “Boa jogada”, “És craque.” Na Rússia, se disseres isso, acham que estás a gozar ou a manipular.
PARTE 5
— Tiveste problemas com a Federação Russa de Futsal (AMFR)?
— Sim. Muitas vezes disse o que pensava. E nem sempre gostavam disso. Por exemplo: os prémios da seleção estavam desatualizados há anos. Falei sobre isso.
Resultado? Disseram que eu causava problemas. Mas eu apenas dizia a verdade. Não fui malcriado. Só quis melhorar as coisas.
— Recusaste-te a ir a um estágio na Turquia?
— Sim. Estávamos em plena crise diplomática com a Turquia. O país estava instável. Perguntei: “Quem se responsabiliza pela nossa segurança?”
Responderam: “Não sabemos.” Disse: “Então não vou.”
E pronto — acusaram-me de ser traidor, antipatriótico. Depois veio a desculpa de que eu estava lesionado. Mas não era verdade.
Mais tarde, até o treinador reconheceu que a minha decisão foi sensata.
— Como é estar afastado da seleção por causa disso?
— É duro. Fomos vice-campeões do mundo, vice-campeões da Europa. Entreguei tudo pela seleção. E agora, por ter defendido os meus princípios, fui afastado.
Mas não me arrependo. A verdade, para mim, está sempre em primeiro lugar.
— Achas que ainda podes voltar?
— Sinceramente, não sei. Depende das pessoas que tomam decisões. Se houver abertura e respeito, voltarei com prazer. Mas não vou mendigar.
Tenho dignidade.
PARTE 6
— Consegues explicar, resumidamente, a diferença entre o campeonato russo e o português?
— Em Portugal, tudo é altamente sistematizado, e essa tendência vem do Sporting e do Benfica.
Nuno Dias e Joel Rocha são treinadores muito metódicos — têm tudo planeado ao milímetro.
Lá, não há espaço para criatividade. É mesmo: um passo ao lado, e estás fuzilado. Para eles, cada jogador é uma peça limitada nas suas ações.
Na defesa, jogam homem a homem, de forma muito arriscada, agressiva e ativa, com muito contacto físico — e os árbitros deixam jogar.
Por isso, os jogadores correm como loucos: se não fores intenso, és atropelado.
E tudo começa na defesa.
— E na Rússia?
— Jogam de forma diferente. Claro que já passaram cinco anos desde que estive cá, por isso teria de observar mais para falar com rigor.
Mas do que vejo: aqui há menos contacto físico, as equipas jogam a partir da meia quadra, pressionam menos, não há tanta agressividade.
Dão mais liberdade com a bola. E há muito mais criatividade — os jogadores tratam bem a bola.
— É difícil adaptar-te?
— Muito. Cada campeonato tem a sua especificidade, ritmo, ideias e princípios. Mudar não é só trocar de país — é trocar de mentalidade.
PARTE 7
— Acreditas que o naming corporativo dos clubes russos prejudica a popularização do futsal, das ligas e dos próprios clubes?
Refiro-me a nomes como KPRF, Gazprom-Ugra, Norilsk Nickel…
— Sinceramente? Não sei se tem algum impacto.
Mas não vejo nada de errado em os clubes terem nomes de empresas — por exemplo: FC Stroitel, Byki Novosibirsk.
Não acho que o nome atrapalhe em nada a popularidade.
— E quanto à recente fusão em Norilsk? O MFK “Norilsk Nickel” e o HC “Norilsk” tornaram-se parte do clube desportivo “Norilsk”.
Achas que usar o nome da cidade (Norilsk) é mais vantajoso do que o da empresa?
— O que há de errado nisso? Como se costuma dizer: “Quem paga, escolhe a música.”
E o que é que o clube poderia vender, se não for o nome?
Esta entrevista foi concedida a Evgeniy Semenikhin para o portal russo sports.ru
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